1.1 A Educação como Direito Público Subjetivo

Os processos educativos, ao longo dos últimos anos, vêm se organizando e se reorganizando para atender as necessidades da sociedade, considerando a pluralidade, a diversidade e suas transfor mações no âmbito cultural, social, econômico, tecnológico e político. Diante disso, a política educacional brasileira, por meio da legislação, edita e reedita suas normativas legais que regem a oferta e o ordenamento da educação brasileira.

O aparato jurídico educacional é regido pelos artigos 205 a 214 da Constituição Federal Brasileira de 1988 que prevê o direito público à educação a todos os cidadãos. Essa ideia está prescrita no artigo 205 ao sinalizar que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colabo- ração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).

Essa Carta Magna gerou um processo gradativo de reorganização política e administrativa no território brasileiro e, especialmente, no setor da democratização da educação pública no país ainda em construção, fazendo com que o papel central da escola passasse a ser pensado, também, em uma perspectiva de humanização dos sujeitos. Essa humanização perpassa pela atuação no contexto da prática (BALL, 2016), em que professores e demais representantes da escola participem dos processos de elaboração e implementação das políticas educacio nais, no caso em questão, do currículo referência das escolas.

Essa Carta Magna gerou um processo gradativo de reorganização política e administrativa no território brasileiro e, especialmente, no setor da democratização da educação pública no país ainda em construção, fazendo com que o papel central da escola passasse a ser pensado, também, em uma perspectiva de humanização dos sujeitos. Essa humanização perpassa pela atuação no contexto da prática (BALL, 2016), em que professores e demais representantes da escola participem dos processos de elaboração e implementação das políticas educacio nais, no caso em questão, do currículo referência das escolas.

Assume-se, portanto, um papel público em que o Estado deve ser o provedor e mantenedor desse processo. Entre vários avanços e retrocessos, a educação brasileira vem, ao longo dos anos, buscando atender aos anseios da sociedade. Nesse sentido, as constantes buscas pela qualidade do ensino evidenciam que os caminhos percorrem diferentes vias, pois, muitas vezes, estão imbricados na compreensão e nos significados que diferentes grupos atribuem à qualidade da educação oferecida na escola.

Assume-se, portanto, um papel público em que o Estado deve ser o provedor e mantenedor desse processo. Entre vários avanços e retrocessos, a educação brasileira vem, ao longo dos anos, buscando atender aos anseios da sociedade. Nesse sentido, as constantes buscas pela qualidade do ensino evidenciam que os caminhos percorrem diferentes vias, pois, muitas vezes, estão imbricados na compreensão e nos significados que diferentes grupos atribuem à qualidade da educação oferecida na escola.

A defesa da escola pública pode ser encarada como um princípio humanizador com vistas à garantia de direitos àqueles que ainda não têm acesso à escola e aos meios primordiais para consolidação de uma vida digna de sujeito. O direito à educação precisa ser entendido como eixo central e base para adquirir os demais direitos elementares do ser humano. Para tanto, alguns desafios precisam ser superados pela sociedade atual, visando alcançar a universalidade do direito à educação e o acesso da escola pública, gratuita e de qualidade, assim como garantir a permanência dos estudantes na escola.

Desse modo, ressalta-se que o financiamento é um dos meios capazes de garantir o avanço da educação brasileira, dado que, sem recursos, não há como garantir a universalidade do atendimento, muito menos a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê contribuições significativas para a superação das desigualdades educacionais e sociais. Assim, torna-se importante salientar alguns dos marcos legais que sustentam os desafios dos sistemas de ensino na busca pelo processo de universalização da educação básica.

Além da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996, outros instrumentos que regulamentam a educação brasileira foram editados e aprovados nos últimos anos, como é o caso da Resolução nº 04/2009 e Resolução nº 05/2010 que dispõem sobre as Diretrizes da Educação Básica e Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil. Outro instrumento legal aprovado em 2014 foi o PNE, por meio da Lei nº 13.005/2014, o qual prevê 20 metas que contemplam a educação básica, o ensino superior, a valorização dos profissionais da educação, a gestão democrática e o financiamento da educação.

O PNE também prevê 254 estratégias que estão elencadas para alcance das metas estabelecidas a serem realizadas até o ano de 2024 em todo território nacional. O documento mais recente aprovado em termos de educação no Brasil é o que institui a BNCC, por meio Resolução nº 2, de 22 de dezembro de 2017, aprovada pelo Conselho Nacional de Educação. Embora recente- mente aprovada, a Constituição Federal de 1988, no art. 210, já sinalizava que deveriam ser “fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988).

Nessa mesma perspectiva, a LDB, no inciso IV do art. 9 o , fixa que a União deve “estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos de modo a assegurar formação básica comum”, retomado no artigo 26 (BRASIL, 1996). Já o PNE de 2014 reafirma um conjunto de leis anteriores e, na meta 7, estratégia 7.1, “estabelece diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum curricular dos currículos” (BRASIL, 2014).

No estado de Santa Catarina, a Proposta Curricular passou por reorganização em 2014 e integra o rol de documentos orientadores dos processos educativos. Em 2019, o Conselho Estadual de Educação, por meio do Parecer CEE no 117 e a Resolução no 70/2019, aprovou e instituiu o “Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense”, orientando a adequação dos Projetos Pedagógicos das escolas, com o objetivo de definir um conjunto de aprendizagens essenciais aos estudantes.

Marcados pelos instrumentos legais da educação brasileira, os sistemas de ensino estadual, federal e municipal procuram, com base em sua autonomia local, instituir seus marcos legais no âmbito de sua atuação no sistema federativo. Assim, os sistemas municipais de ensino da região da AMOSC, criados a partir de 1997, conforme quadro a seguir, iniciaram o processo local de planejamento, organização e atuação nas políticas educacionais em escala municipal dos quais todos possuem Conselhos Municipais de Educação ativos.

Seguindo ordenamento de planejamento educacional, em junho a agosto de 2015, todos os municípios da AMOSC elaboraram seus Planos Municipais de Educação alinhados ao PNE, conforme previsto no art. 8º, o qual orientou que os Estados e Municípios deveriam, no prazo de um ano após aprovado o Plano Nacional, elaborar ou adequar seus planos em consonância com as diretrizes, metas e estratégias da Lei no. 13.005/2014.

Amparada nos documentos legais que orientam a educação brasileira, a região da AMOSC vem, a partir do Colegiado de Secretários Municipais de Educação criado em 1997, discutindo e planejando a educação regional. Nessa caminhada, as parcerias foram e são estabelecidas com instituições de ensino superior da região e, no ano de 2017, firmou-se a parceria com a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) para a formação continuada de professores. Neste tempo, dentre vários temas debatidos, a BNCC é aprovada em dezembro do mesmo ano, demandando formações específicas. Ainda em 2017, é firmada parceria com a Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UNOCHAPECÓ), criando um grupo de trabalho para estudos, discussões sobre o processo de avaliação numa perspectiva de garantir a aprendizagem dos estudantes, bem como compreender por que eles não aprendem e suas principais lacunas no processo pedagógico. Neste grupo também se iniciou a discussão e a elaboração dos critérios de avaliação a partir dos objetivos de aprendi zagem e habilidades. Essas duas instituições superiores da região da AMOSC junto aos profissionais que participaram do processo tiveram papel fundamental para consolidação do presente documento curricular.

Diante do quadro, a partir do colegiado de educação e do grupo de formação das equipes pedagógicas, a partir da BNCC e do Currículo do Território Catarinense, é estabelecido um plano coletivo de trabalho para elaboração de um documento orientador que considere os aspectos regionais na configuração das diretrizes, princípios e currículo regional.

Nesse sentido, o trabalho iniciado em 2017 na região da AMOSC vem atender aos instrumentos norma tivos da política nacional, objetivando a melhoria da educação e contribuindo, sobretudo, com a aprendizagem dos estudantes atendidos pela Rede Municipal de Ensino. Desse modo, a aproximação dos professores a partir do percurso de formação continuada e discussões na elaboração do currículo regional foi essencial no contexto em que ele é o agente direto da mediação do trabalho de atuação prática dos documentos oficiais, no caso em questão, do currículo.

A materialidade desse trabalho já evidenciou no ano de 2020, através da “atuação prática” nas escolas da região, por meio dos planos de aulas dos professores (mesmo em tempos adversos marcados pela pandemia mundial do COVID-19), seguiu-se como referência no planejamento o currículo do 1º ao 5º ano elaborado na primeira versão deste documento. Boas práticas adminis trativas e pedagógicas poderão e deverão ser objeto de elaboração de novos instrumentos de trabalho que facilitem e subsidiem professores e gestores para garantir aprendizado dos estudantes da região da AMOSC, qualificando esse processo formativo ao longo dos próximos anos e estimulando relatos de suas práticas de sala de aula

QUADRO 1: SISTEMAS MUNICIPAIS DE ENSINO DA REGIÃO DA AMOSC

SISTEMA MUNICIPAL DE ENSINO
MUNICÍPIO ANO DE IMPLANTAÇÃO ATO LEGAL DE IMPLANTAÇÃO
Águas de Chapecó 2007 Lei n° 1546 de 21/08/2007
Águas Frias 1997 Lei n° 312 de 15/12/1997
Arvoredo 2012 Lei n° 041 de 31/07/2012
Caxambu do Sul 2008 Lei n° 001 de 04/11/2008
Chapecó 1997 Lei n° 48 de 22/12/1997
Cordilheira Alta 2007 Lei n° 064 de 07/08/2007
Coronel Freitas 2008 Lei n° 1618 de 16/09/2008
Formosa do Sul 2007 Lei n° 23 de 17/11/2007
Guatambu 2002 Lei n° 520 de 20/12/2002
Jardinópolis 2009 Lei n° 427 de 23/09/2009
Nova Erechim 1997 Lei n° 880 de 24/11/1997
Nova Itaberaba 2000 Lei n° 435 de 23/10/2000
Paial 2011 Lei n° 494 de 06/10/2011
Pinhalzinho 2000 Lei n° 1371 de 11/09/2000
Planalto Alegre 1999 Lei n° 198 de12/09/2000
Santiago do Sul 2000 Lei n° 607 de 22/12/2011
São Carlos 2007 Lei n° 1489 de 22/11/2007
Serra Alta 1998 Lei n° 771 de 12/08/2008
Sul Brasil 2006 Lei n° 600 de 15/12/2006
União do Oeste 2007 Lei n° 049 de 27/12/2008

QUADRO 2: PLANOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO APROVADOS EM 2015

SISTEMA MUNICIPAL DE ENSINO
MUNICÍPIO LEI N° DE METAS
Águas de Chapecó Lei n.1882 – 15/06/2015 18
Águas Frias Lei n.1134 – 09/06/2016 17
Arvoredo Lei n.1037 – 23/06/2015 19
Caxambu do Sul Lei n.1355 – 24/06/2015 14
Chapecó Lei n.2076 – 16/06/2015 19
Cordilheira Alta Lei n.116 – 01/07/2015 19
Coronel Freitas Lei n.6740 – 11/08/2015 19
Formosa do Sul Lei n.1000 – 15/06/2015 14
Guatambu Lei n.642 – 23/06/2015 18
Jardinópolis Lei n.934 – 17/06/2015 20
Nova Erechim Lei n.1053 – 15/06/2025 19
Nova Itaberaba Lei n.1779 – 18/06/2015 20
Paial Lei n.583 – 08/06/2015 20
Pinhalzinho Lei n.747 – 19/06/2015 19
Planalto Alegre Lei n.2446 – 23/06/2015 20
Santiago do Sul Lei n.1772 – 08/06/2015 20
São Carlos Lei n.784 – 19/06/2015 19
Serra Alta Lei n.1032 – 12/06/2015 18
Sul Brasil Lei n.1039 – 12/06/2015 16
União do Oeste Lei n.1028 – 17/06/2015 19

1.2 Percurso Normativo, Currículo e Educação Integral

Na escola, as intervenções no percurso formativo são significativas no processo de humanização. Haja vista que toda ação educativa pressupõe uma intencionalidade político-pedagógica. Segundo a Proposta Curricular de aprender na escola, “a importância do desenvolvimento de todas as potencialidades humanas, sejam elas físicas/motoras, emocionais/afetivas, artísticas, linguísticas, expressivo-sociais, cognitivas”, como uma impor tante contribuição “para o desenvolvimento humano de forma unilateral” (SANTA CATARINA, 2014, p. 31).

Então, o movimento de reorganização dos currí culos das escolas dos municípios que compõem a região da AMOSC abrange a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (Anos Iniciais e Finais) e reforça a importância de um comprometimento coletivo com a noção de Educação Integral e desenvolvimento humano global disposto na BNCC (BRASIL, 2018, p. 14). Educação Integral em que “o processo educativo não comporta uma atitude parcial, fragmentada, recortada da ação humana, baseada somente numa racionalidade estratégico procedimental”, mas também o planejamento de percursos formativos compromissados “com a formação do sujeito livre e independente daqueles que o estão gerando como ser humano capaz de conduzir o seu processo formativo, com autonomia e ética” (BRASIL, 2013, p. 18).

Conforme destaca Santa Catarina (2019, p. 13):

[...] a formação integral do ser humano implica compreender a Educação Básica em um movimento contínuo de aprendizagens, um percurso formativo no qual a elaboração de conhecimentos vai se tornando complexa de maneira orgânica e progressiva, independentemente das etapas de organização das instituições escolares. Esse movimento ininter rupto precisa ser garantido no diálogo entre as etapas, bem como entre os anos ou ciclos de formação. Essa articulação precisa acontecer também entre os diferentes componentes curriculares e em escolhas teórico-metodológicas que mobilizem os estudantes à aprendizagem, superando a ideia de transições, bem como da organização fragmentada das propostas pedagógicas educacionais.

Pode-se dizer, dessa forma que, na escola, o percurso formativo a ser planejado tem o papel de oportunizar o acesso a diferentes conhecimentos especializados, os quais são de direito dos alunos e que estão dispostos nas diferentes áreas do conhecimento, considerando a impor tância e o poder que estes possuem para modificar o modo de enxergar e intervir no mundo, como “conhecimento poderoso” (YOUNG, 2007, p. 1294).

Todo trabalho político-pedagógico realizado pelas professoras e professores ao longo do percurso de escola rização dos sujeitos, seja vinculado à sistematização didática de conhecimentos científicos dispostos nos componentes curriculares, firmando a abrangência da sala de aula, mas também a todas as atividades da escola e do contexto em que ela está inserida (projetos, festas, atividades culturais, feiras, aulas de campo, cineclubes, grupos de dança ou teatro, coletivos de pintura, práticas esportivas entre outros), possui relevância. Assim, conforme o documento de atualização da PCSC (2014), torna-se desafiante planejar um percurso formativo entendido “como um continuum que se dá ao longo da vida escolar”, pois é preciso considerar logo de imediato que, nesse caminho a ser percorrido:

I. a natureza humana não é dada de forma biológica, mas produzida nas relações intersubjetivas, o que remete à necessidade de se pensar o percurso formativo de cada novo ser da espécie, já que a humanidade é forjada social e historicamente nessas relações e, consequentemente, nos processos de mediação;
II.a contemporaneidade é marcada pelo avanço da técnica, da ciência e da informação, e no percurso formativo é preciso considerar ações educativas que permitam compreender este momento histórico da humanidade e os desafios colocados à vida, nas relações políticas, econô- micas, culturais e ambientais; assim, também, as alterna tivas possíveis de serem construídas na busca de uma sociedade mais justa, politicamente democrática, econo micamente solidária, ambientalmente sustentável, que valorize e respeite a pluralidade cultural;
III. o/a professor/a assume papel de mediador/a, sujeito estratégico na promoção do encontro-confronto entre os conhecimentos cotidianos e os conhecimentos científicos, no processo de elaboração conceitual, objeti vando, sobretudo, o aprofundamento e a ampliação da capacidade de compreensão e ação dirigida do sujeito;
IV. a necessidade de transcender o trabalho em sala de aula com os componentes curriculares das áreas em suas especificidades, promovendo o diálogo com os diferentes aspectos da cultura e com as fontes pedagó gicas da realidade, o diálogo de saberes entre sujeitos, seus múltiplos territórios e territorialidades, a diversidade humana em suas múltiplas dimensões (de classe, gênero, étnico-racial, territorial, entre outros);
V. a necessidade de pensar em estratégias metodológicas diferenciadas e de avaliação formativa, que contribuam para desnaturalizar processos, que ampliem as capacidades humanas de interpretação da realidade, que possibilitem a construção de novos conhecimentos e a emancipação humana, ou ainda, a formação de sujeitos na contemporaneidade.

O currículo é um importante dispositivo de movi- mento. Nessa trajetória, a BNCC do Ensino Fundamental reconhece que o Brasil é um país diverso “caracterizado pela autonomia dos entes federados, acentuada diversidade cultural e profundas desigualdades sociais” e que, por isso, “os sistemas e redes de ensino devem construir currículos, e as escolas precisam elaborarpropostas pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes, assim como suas identidades linguísticas, étnicas e cultu rais” (BRASIL, 2018, p. 15).

A BNCC e os currículos têm papéis complemen tares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas para cada etapa da Educação Básica, uma vez que tais aprendizagens só se materializam mediante o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação. Assim, compreende-se que o currículo não se resume e não pode ser simplificado em quadros de referência ligados às Áreas do Conhecimento, pois ele acontece na escola, manifesta-se e ganha materialidade no planejamento do percurso formativo no dia a dia, ao longo de um bimestre, semestre e/ou ano letivo.

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a partir de seus diálogos teóricos, permitem evidenciar que o currículo é sempre território em disputa, fruto de uma seleção e produção de conheci- mentos, “campo conflituoso de produção de cultura, de embate entre pessoas concretas, concepções de conheci- mento e aprendizagem, formas de imaginar e perceber o mundo” e que, “por consequência, um dispositivo de grande efeito no processo de construção da identidade do(a) estudante” (BRASIL, 2013, p. 23-24).

Essas mesmas diretrizes destacam que o currículo deve “difundir os valores fundamentais do interesse social, dos direitos e deveres do cidadão, do respeito ao bem comum e à ordem democrática, bem como considerar as condições de escolaridade dos estudantes em cada estabelecimento, a orientação para o trabalho, a promoção de práticas educativas formais e não forma is”. Assim, torna-se importante reconhecer “o currículo como coração que faz pulsar o trabalho pedagógico na sua multidimensionalidade e dinamicidade” (BRASIL, 2013, p. 48)

O currículo, então, compreende a presença e o trabalho com as unidades temáticas e seus conceitos estruturantes, os conhecimentos essenciais em que estão complicados os conhecimentos científico-didáticos que precisam ser mobilizados para atender os objetivos/habilidades de aprendizagem. Mas, também, a relação com as fontes pedagógicas da realidade, estabele cendo conexões que potencializam o processo de significação dos conhecimentos e conceitos trabalhados com a realidade vivida. Realidade que é transescalar (local/ global) multidimensional (cultura, política, economia e ambiente), material e imaterial (simbólica) ao mesmo tempo. Por sua vez, compreende elencar critérios de avaliação e escolher instrumentos que contribuam para apreender os potenciais de aprendizagem dos estudantes em uma perspectiva dialógica.

O disposto na Resolução nº 4, de 13 de julho de 2010, do Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica, em seu Capítulo I, trata das formas para a Organização Curricular, Art. 13:

I. O currículo deve difundir os valores fundamentais do interesse social, dos direitos e deveres dos cidadãos, do respeito ao bem comum e à ordem democrá tica, considerando as condições de escolaridade dos estudantes em cada estabelecimento, a orientação para o trabalho, a promoção de práticas educativas formais e não formais;
II. Na organização da proposta curricular, deve-se assegurar o entendimento de currículo como experiências escolares que se desdobram em torno do conheci- mento, permeadas pelas relações sociais, articulando vivências e saberes dos estudantes com os conheci- mentos historicamente acumulados e contribuindo para construir as identidades dos educandos;
III. A organização do percurso formativo, aberto e contextualizado, deve ser construída em função das peculiaridades do meio e das características, interesses e necessidades dos estudantes, incluindo não só os componentes curriculares centrais obrigatórios, previstos na legislação e nas normas educacionais, mas outros, também, de modo flexível e variável, conforme cada projeto escolar, assegurando:
a) Concepção e organização do espaço curricular e físico que se imbriquem e alarguem, incluindo espa ços, ambientes e equipamentos que não apenas as salas de aula da escola, mas, igualmente, os espaços de outras escolas e os socioculturais e esportivo-recreativos do entorno, da cidade e mesmo da região;
c) Ampliação e diversificação dos tempos e espaços curriculares que pressuponham profissionais da educação dispostos a inventar e construir a escola de qualidade social, com responsabilidade compartilhada com as demais autoridades que respondem pela gestão dos órgãos do poder público, na busca de parcerias possíveis e necessárias, até porque educar é responsabilidade da família, do Estado e da sociedade;
d) Ampliação e diversificação dos tempos e espaços curriculares que pressuponham profissionais da educação dispostos a inventar e construir a escola de qualidade social, com responsabilidade compartilhada com as demais autoridades que respondem pela gestão dos órgãos do poder público, na busca de parcerias possíveis e necessárias, até porque educar é responsabilidade da família, do Estado e da sociedade;
f) Ampliação e diversificação dos tempos e espaços curriculares que pressuponham profissionais da educação dispostos a inventar e construir a escola de qualidade social, com responsabilidade compartilhada com as demais autoridades que respondem pela gestão dos órgãos do poder público, na busca de parcerias possíveis e necessárias, até porque educar é responsabilidade da família, do Estado e da sociedade;
g) Constituição de rede de aprendizagem, entendida como um conjunto de ações didático-pedagógicas, com foco na aprendizagem e no gosto de aprender, subsidiada pela consciência de que o processo de comu nicação entre estudantes e professores é efetivado por meio de práticas e recursos diversos;
h) Adoção de rede de aprendizagem, também, como ferramenta didático-pedagógica relevante nos programas de formação inicial e continuada de profissionais da educação, sendo que esta opção requer planejamento sistemático integrado, estabelecido entre sistemas educativos ou conjunto de unidades escolares. Assim, no movimento de reorganização curricular desencadeado a partir dos estudos da BNCC na região da AMOSC considera-se importante resguardar uma educação integral que abranja a função social da escola, buscando:

  • Oportunizar a construção de um ambiente escolar que melhore o relacionamento entre os membros da comunidade;
  • Propiciar o acesso ao conhecimento especializado, baseando-se na ética e possibilitando um espaço maior e mais qualificado de comunicação, que respeita os saberes da cultura da criança, do adolescente e da comunidade;
  • Promover os conceitos e os valores por uma sociedade com justiça social e de solidariedade, exercitando no próprio relacionamento e convivência de quem faz parte da própria escola;
  • Contemplar aspectos que visem à humanização, à cidadania, ao autoconhecimento e ao conhecimento da coletividade através do respeito ao próximo e a si, da solidariedade, da ética, da honestidade e da humildade;
  • Contribuir para formação do ser social e cultural, que se constitui como projeto coletivo, compartilhado por crianças, jovens, famílias, educadores, gestores e comunidades locais;
  • Formar seres humanos capazes de viver em sociedade e capazes de criar seus próprios modos de conhecer e agir no mundo, de resolver problemas complexos de seu cotidiano, pautando-se na formação de sujeitos críticos, criativos e autônomos;
  • Potencializar as artes e, em geral, o desenvolvimento de dimensões afetivas;
  • Promover a cidadania e os princípios dos direitos humanos

1.3 Educação Escolar e Desenvolvimento Humano

Um percurso formativo comprometido com o desenvolvimento humano integral dos sujeitos escolares exige compreendê-los em sua multidimensionalidade (psicomotora, intelectual, social, ética, moral, afetiva e simbólica), o que também implica superar uma educação fragmentada – entre formação intelectual e formação para a prática – e descolada da realidade. É preciso destacar que o percurso de desenvolvimento humano envolve a superação e passagem de um estágio de pensa- mento e comportamento naturais, orientados por inclinações biológicas para um estágio mais complexo, mediado por dispositivos culturais (instrumentos e símbolos presentes na vida social).

Nesse sentido, compreende-se que a educação esco lar, por meio do trabalho docente, possui a tarefa precípua de mediar sistemática e intencionalmente o desenvolvimento de funções e operações mentais superiores, ou seja, de formas complexas de pensamento medi- adas pelos elementos simbólicos da cu ltur a (b ases dos sistem as de c o n c e p ç õ e s científcas/conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade) que reorganizam o funcionamento cerebral do humano e suas formas de perceber, sentir, representar, explicar, conceituar e atuar no mundo físico/natural e social.

Desenvolver-se, assim, implica em apropriar-se do que é humano por meio de uma relação mediada simbolicamente com o meio social. E, dessa forma, as escolas, por meio das mediações pedagógicas realizadas pelas profes soras e professores ao longo de um percurso formativo planejado, precisam oferecer aos estudantes o contato com sistemas de conceitos/simbólicos (conteúdos) que requerem, para sua compreensão e internalização (conversão em processomental), a constituição de modalidades de pensamento complexas e voluntárias (consci entes e autorregulados).

Para desenvolver o pensamento conceitual e comportamentos autorregulados, volitivos e controlados culturalmente, nos processos de mediação pedagógica, os sujeitos escolares precisam colocar em funcionamento,durante as atividades culturais e intelectuais, um conjunto de processos mentais, como: sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento, imagi nação, emoção e sentimento. Esses processos mentais precisam atuar de forma conjunta para originarem a atividade cerebral complexa e superior, ou seja, mediada culturalmente.

Assim, o exercício intelectual requerido no âmbito das atividades de estudo promovidas especificamente no processo de escolarização envolve a captação, pelas vias sensoriais e perceptivas (visão, audição, gustação, tato e olfato), dos fenômenos do mundo exterior. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sentidos não fornecessem a informação necessária à atividade cerebral, nenhuma atividade consciente seria possível.

No processo de escolarização, desta forma, o contato das crianças com dispositivos culturais/simbólicos (tais como sons, gestos, fala/palavras, aromas, sabores, letras, escrita, números, artefatos relacionados à alimentação, vestuário, moradia, religião, traba lho, comércio, lazer, jogos, brinquedos, brincadeiras, tecnologia, etc.) modificam e reorganizam os processos neurofisiológicos de seu sistema nervoso central, fazendo com que ela converta as funções e operações mentais involuntárias e instintivas em processos funcionais mediados pelos artefatos culturais (sistemas de escrita e numeração, arte, música, dança, esporte, jogos, brincadeiras, literatura, ciência e tecnologia, religião...).

Assim, na escola, ao se propor um trabalho pedagó gico com estudantes do 2º ano, por exemplo, tendo como ponto de partida o componente de Ciências, unidade temática “Vida e Evolução”, visando desenvolver estudos sobre os animais, as crianças precisarão ser provocadas a realizar um movimento intelectual que não se limita às sensações e percepções das características e atributos físicos destes seres vivos, como: tamanhos, sons, cores, formas, movimentos, espessura e textura de seus atributos físicos

A partir de uma perspectiva interdisciplinar, elas precisarão vinculá-los a eventos e situações conceituadas pela linguagem e categorizadas pela cultura, percebendo que os animais possuem uma história, habitam um determinado espaço geográfico e ambiental, configuram- - se como organismos vivos que têm um funcionamento biológico específico. São categorizados biologicamente, possuem um ciclo de vida, integram a biosfera, os ecossistemas, a cadeia alimentar biológica e também produtiva, suas funções podem diferenciar-se dependendo do contexto social e práticas culturais de determinados povos e possuem diversas significações e funções culturais

O processo de escolarização interfere diretamente na conversão da sensação e percepção naturais em sensação e percepção culturais, pois teoriza e conceitua a experiência prática dos sujeitos com base nas produções históricas e culturais da humanidade (ciência). As formas complexas de sensação e percepção manifestam-se apenas nos sujeitos formados com influências culturais e escolares/acadêmicas, isto é, as pessoas com um sistema de códigos conceituais para os quais as sensações e percepções estão adaptadas

Entretanto, cabe salientar que as sensações e percepções culturais dependem da capacidade de atenção voluntária , consciente, seletiva e autorregulada dos sujeitos. Devido à intensidade de estímulos oriundos do contexto sociocultural, o sujeito desenvolve mecanismos mentais de seleção de informações relevantes. A função seletiva da atenção confere ao humano uma potencialidade de realizar um grande número de movimentos mediante a inibição de outros irrelevantes às atividades práticas

É no âmbito da complexa dinâmica de interações em que o humano está imerso que emerge a necessidade de estabelecer associações entre informações essenciais para sua atividade, isso o leva a refutar as demais que dificultam o seu processo racional de pensamento. Na ausência dessa capacidade seletiva, a quantidade de infor mação não selecionada seria tão desorganizada que nenhuma atividade se tornaria possível. Se não houver a inibição de um conjunto de estímulos descontrolados e irrelevantes às atividades, o pensamento organizado, voltado à solução dos problemas cotidianos e intelectuais do humano, seria inacessível.

A atenção, inicialmente, é baseada em mecanismos neurológicos inatos e gradualmente vai sendo submetida a processos de controle voluntário, em grande parte fundamentada na mediação pedagógica e mediação simbólica promovidas no decurso do processo de escola rização. Isso evidencia o papel da mediação cultural na conversão de processos mentais elementares, de gênese biológica, em processos superiores oriundos e constituídos nas interações sociais. Os comportamentos organizados, voluntários e autorregulados se desenvolvem no humano devido às condições culturais (práticas sociais, atividade escolar, contextos profissionais, etc.) que começam a produzir um determinado número de novas necessidades comportamentais e mentais

Essa convergência dos mecanismos involuntários da atenção em mecanismos voluntários é fundamental para o desenvolvimento do comportamento seletivo e organizado e para a atividade escolar. Entretanto, esse processo ocorre de forma gradual e mediada, pois as exigências sociais e uso de dispositivos simbólicos modi ficam substancialmente a atividade mental da criança, tornando as ações direcionadas e seletivas. O caráter direcional e a seletividade da atenção da criança tornam a execução das tarefas possível. Se na realização das atividades cotidianas e escolares criança operasse mental- mente apenas com os mecanismos involuntários da atenção natural, suas ações seriam eminentemente desor denadas e instáveis, o que tornaria a constituição do pensamento organizado e superior impossível

É preciso destacar, ainda, que a aprendizagem cultural não seria possível sem a capacidade de armazena- mento cerebral do conhecimento histórico (memória). A experiência histórica da humanidade seria impossível na ausência de uma propriedade mental cuja função central fosse o registro e o armazenamento dos elementos que resultam dela (produções culturais), ou seja, seria impossível na ausência da capacidade cerebral de memorização (memória cultural). Os processos de aprendizagem cotidiana e escolar tornar-se-iam impossíveis se o humano não possuísse a capacidade de memória

Assim como o percurso de conversão da sensação e percepção naturais em sensação e percepção culturais, da atenção involuntária (natural) em atenção voluntária (cultural), a memória também passa por um processo de conversão de mecanismos cerebrais naturais para meca nismos cerebrais mediados por signos, por processos históricos e culturais. A memória mediada permite ao sujeito o controle do seu próprio comportamento, por meio da utilização de instrumentos e signos que provo- quem a lembrança do conteúdo a ser recuperado, de forma deliberada, volitiva, intencional e consciente. Os grupos humanos desenvolveram várias formas de utilização de signos para auxiliar a memória: sistema de numeração, de escrita, livros, mapas, calendários, agendas, listas, manuais, fórmulas matemáticas, físicas e químicas, etc

Com o desenvolvimento histórico-cultural, o ser humano desenvolve modos de utilização do mecanismo cerebral de memorização que distanciam seu desem penho daquele definido pelas formas naturais de funcio namento mental. Por fim, cabe destacar que a memorização mediada, isto é, fundada em signos, não resulta apenas do processo de maturação biológica das estruturas cerebrais, pois o funcionamento do cérebro odifica-se a partir da interferência do substrato cultural e histórico- social no órgão físico. As condições específicas do desen volvimento social possibilitaram a superação dos processos mentais naturais e involuntários em processos mentais voluntários, culturalmente desenvolvidos.

A sensação, percepção, atenção e memória culturais consistem nas funções mentais reguladoras da atividade mental complexa requerida à realização das práticas culturais e intelectuais e consistem na base cerebral neces sária ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento. Portanto, a aprendizagem escolar é fundamental no desenvolvimento dessas funçõesmentais complexas e marcadamente culturais, pois ao mediar o processo de internalização cultural, modifica o funcionamento da atividade mental da criança e sua relação cognitiva com o mundo.

É preciso salientar que a linguagem possui um papel fundamental na formação dos processos mentais complexos da criança. Com a aquisição de um complemento tão extraordinário como a linguagem, a palavra passa a fazer parte de todas as formas básicas de atividade humana. Logo, interfere na formação da percepção, da memória, da atenção e no estímulo das ações, tornando possível a conversão de seus mecanismos inatos, instintivos, reflexos e involuntários, em mecanismos culturais. A sensação, percepção, atenção, memória, imaginação, consciência e a ação deixam de ser consideradas como propriedades mentais simples, eternas e inatas e começam a ser entendidas como produtos de formas sociais complexas dos processos mentais da criança, como complexos “sistemas de funções” que resultam do desenvolvimento da atividade infantil nos processos de intercâmbio, como atos reflexivos complexos em cujo conteúdo se inclui a linguagem.

Pode-se dizer que a linguagem abarca a experiência de gerações, ou da humanidade, de forma mais ampla. Ela intervém no processo de desenvolvimento da criança desde os primeiros anos de vida. Ao nomear objetos e definir, assim, as suas associações e relações, o adulto cria novas formas de reflexão da realidade na criança, incom paravelmente mais profundas e complexas do que ela poderia formar através da experiência individual. Todo esse processo consiste em um mecanismo de transmissão do saber cultural e de formação de conceitos abstratos e oriundos de sistemas simbólicos de pensamento e carac teriza-se como central do desenvolvimento intelectual infantil.

Nesse sentido, a intercomunicação com os adultos tem um significado decisivo, porque a aquisição de um sistema linguístico (dispositivos simbólicos abstratos) requer a reorganização de todos os processos mentais da criança. A palavra (unidade mínima da linguagem) passa a ser um fato excepcional que dá forma à atividade mental, aperfeiçoando o reflexo da realidade e criando formas de sensação, percepção, atenção, memória, imaginação, emoção, pensamento e ação.

Outro marco cultural no desenvolvimento da criança consiste na aquisição da linguagem escrita. A escrita é uma função culturalmente mediada que associa a percepção, atenção, memória, linguagem simbólica com os processos de pensamento conceitual. A escrita tem uma função social e funciona como um suporte para a memória, sistematização e transmissão de ideias e conceitos em contextos sociais e atividades culturais variadas. A apropriação do Sistema de Escrita Alfabética inicia-se muito antes da entrada da criança na escola, pois ela está exposta socialmente à cultura letrada, aos diferentes usos da linguagem escrita e aos seus diversos suportes textuais. Mas, é a partir da inserção no espaço escolar que a criança ampliará suas capacidades de ler e escrever através do processo sistemático de aquisição e apropriação do sistema de escrita, alfabético e ortográfico em contextos de letramento (com a participação e usos em eventos variados de leitura e escrita nas práticas sociais). A alfabetização e letramento não são processos indivi duais, independentes do contexto. Ao contrário, inte ragem e articulam-se com os usos e finalidades da língua escrita na vida cotidiana

A escrita é mais do que um sistema de formas linguísticas organizadas segundo a lógica com a qual o sujeito se confronta, esforçando-se para compreendê-lo. Ela é uma forma de linguagem complexa, uma prática social e cultural própria de membros de uma sociedade letrada. Ela age sobre processos mentais, transformando- os. A utilização da escrita transforma a memória. Ao fazer uso de uma lista de compras por escrito, ao anotar um endereço ou os ingredientes e modos de preparo de uma receita, não só se liberam neurônios da necessidade de reter mecanicamente algumas informações, como aumenta-se enormemente a quantidade de informações que se pode armazenar. A escrita permite esquecer informações, que, tendo sidor registradas, podem ser recupera- das. A escrita também transforma a capacidade de atenção, os modos de buscar informações. Um exemplo é o uso de placas informativas no trânsito que, quando percebidas e processadas mentalmente, regulam e originam ações organizadas e não caóticas durante o ato de dirigir.

O ingresso na escola representa para as crianças um novo tipo de relação com a escrita, que, além de ser inten sificada, passa a ser sistematizada, pois ela se torna um objeto de estudo, um produto cultural que deve ser inter nalizado, convertido em formas de pensamento e em formas culturais de ação e interpretação do mundo. Nesse processo, a criança aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura, aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita. Esse aprender significa fazer, usar, praticar e conhecer esse sistema simbólico e suas funções sociais.

Quando os processos de desenvolvimento do pensa- mento e da linguagem se unem, originando o pensamento verbal e a linguagem racional, o modo de operar mentalmente do ser humano modifica-se substancialmente, pois torna-se mais sofisticado e mediado pelo sistema simbólico da linguagem (oral e escrita) que se caracteriza por processos cerebrais de abstração, generalização e categorização altamente complexos (pensamento conceitual)

O desenvolvimento humano envolve um processo gradativo e contínuo de apropriação de sistemas científicos e culturais criados para explicar e conceituar os fenômenos sociais, culturais e físico/naturais. O percurso de desenvolvimento da infância à fase adulta fundamenta-se no movimento dialético e dialógico de estudo, compreensão e uso das bases dos sistemas de concepções científicas que explicam o funcionamento do mundo a partir de elementos biológicos, históricos, geográficos, matemáticos, físicos, químicos, linguísticos, literários, estéticos e éticos. Logo, o processo de escolarização focado no desenvolvimento humano envolve a transformação, pela atividade social/escolar, do legado biológico da espécie humana. É nessa transformação que se encontra a gênese das funções mentais superiores, fundantes dos comportamentos complexos culturalmente formados do humano.

Mas é preciso destacar que o desenvolvimento humano é um processo não linear, marcado por rupturas, transformações profundas e saltos em direção a percursos intelectuais e comportamentais qualitativamente mais evoluídos e sofisticados. Esse desenvolvimento integra e marca não apenas a história do desenvolvimento social da humanidade como também a história cultural dos indivíduos.

O desenvolvimento, dessa forma, não se realiza automaticamente devido ao enraizamento biológico evolutivo e maturacional, mas em decorrência da superação de contradições entre formas primitivas e formas culturalmente desenvolvidas de comportamento e pensamento. A base estrutural não é outra senão a atividade mediadora, a utilização de signos externos (processos e práticas socioculturais) a transmutarem-se em signos internos (processos mentais, formas mediadas de pensa mento) orientadores da constituição da conduta complexa, organizada, seletiva, direcional, planejada, intencional, consciente, voluntária e autorregulada do humano, circunscrita no ambiente sociocultural e nos modos históricos de organização social.

A partir dessa postulação, pode-se inferir que o desenvolvimento humano requer processos sucessivos de aprendizagem mediada culturalmente, pois esta impulsiona e reorganiza a atividade mental humana, originando novos modos de operar cognitivamente no mundo.

Concebendo o humano como um ser social, histó rico e cultural que se forja e constitui-se a partir do acesso ao processo de internalização do patrimônio cultural e científico da humanidade e dos modos de organização da vida social, que torna possível a formação de complexos e sofisticados mecanismos de funcionamento mental, fundamentais no desenvolvimento das máximas potencialidades intelectuais e emocionais humanas, deve-se analisar as condições sociais e históricas concretas em que a humanidade é forjada nos sujeitos em processo de escolarização. Não se intenciona humanizar para um paradigma que hierarquiza pessoas e grupos, que define padrões sociais, econômicos, culturais e estéticos, que concebe o humano como um consumidor dinâmico, flexível, volátil, performático, efêmero e adaptável e para processos de consumo exacerbados por parte de uma pequena camada populacional.

Então, no processo de escolarização, a apropriação do patrimônio cultural e científico (conhecimento) não deve possuir conotação meramente mercantil, funcional, utilitarista, pragmatista e adaptativa, sendo o estopim à empregabilidade e competitividade no âmbito do mercado, mas sim, um movimento de instrumentali zação dos processos de sentir, perceber, pensar, agir e criar formas de organização de vida social que priorizem, por exemplo, a relação harmônica entre humano e natureza que eduquem para: sensibilidade ética e estética; o uso consciente dos recursos naturais; o respeito ao patrimônio histórico e cultural de diferentes povos e grupos étnicos; a tolerância e respeito às práticas religiosas; o respeito à diversidade; a constituição de sistemas políticos e econômicos que garantam os direitos básicos de moradia, saúde, alimentação e educação; a superação da miséria, das guerras, da fome, das formas de violência, das desigualdades sociais e econômicas, da indiferença humana; a inovação nos processos de produção de alimentos sem uso de agrotóxicos e de modificações genéticas prejudiciais à saúde humana; o uso das inovações científicas e tecnológicas com o intuito de gerar qualidade de vida e não potencial comercial e de consumo à indústria, entre tantos outros processos relacionados à dignidade humana. Faz-se necessário:

  • Entender a criança enquanto ser integral que se comunica com o mundo por meio do seu corpo, em experiências concretas com diferentes linguagens e com parceiros distintos, com os princípios estéticos, políticos e éticos e a inseparabilidade entre educar e cuidar;
  • Promover a recriação da cultura infantil e juvenil, do acesso ao patrimônio social, cultural e científico, ampliando as suas capacidades cognitivas, motoras, relacionais e emocionais;
  • Explorar os gestos, movimentos, palavras, sons, linguagens artísticas, histórias, elementos da natureza, objetos, ambientes urbanos e do campo, promovendo o relacionamento com o repertório ambiental, artístico, cultural, tecnológico e científico;
  • Fortalecer a construção da identidade pessoal e social, por meio de interações e das dinâmicas vivenciadas na escola.

É preciso destacar que a BNCC, por exemplo, se mostra comprometida com uma compreensão de educação integral como sendo “construção de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses do estudante e, também, com os desafios da sociedade contemporânea”, o que, na visão desta base, “supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir” (BRASIL, 2018, p. 14).

A PCSC, ao discorrer sobre a educação integral, afirma que “uma educação integral não cabe dentro dos muros da escola” pois é necessário “encontrar na vizinhança e arredores, espaços que cumpram papéis pedagógicos” com o intuito de “ampliar o repertório vivencial da vida escolar dos sujeitos, buscando relacionar os conceitos sistematizados às vivências na comunidade”

(SANTA CATARINA, 2014, p. 43-44). E, por isso, não se pode reduzir o currículo em ação apenas em uma lista de conteúdos abstratos a serem trabalhados nas aulas ao longo de um percurso formativo, mas também contem plar o trabalho com as fontes pedagógicas da realidade e traduzir-se em diferentes ações educativas, como traba lhos de campo, feiras culturais e científicas, rodas de diálogo, laboratórios práticos, oficinas e projetos, entre outros

1.4 Infâncias e Diversidade

Nos estudos realizados ao longo da elaboração deste documento de orientação curricular, apontou-se a importância de considerar, por exemplo, que a concepção de infância está ligada à cultura e à sociedade em que a criança está inserida, pois as crianças estão sempre sujeitas a serem influenciadas no espaço-tempo em que vivem¹. Benjamin (2002, p. 77) é enfático ao afirmar que “a criança é um sujeito da cultura, e não apenas objeto dela”. Assim, a forma de compreender a criança e a infância tem passado por mudanças significativas, que são perceptíveis na literatura da área produzida nas últimas décadas, bem como nos diversos documentos oficiais elaborados pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil – DCNEI – trazem um novo olhar ao referir-se à concepção de criança e às especificidades do ser criança quando afirmam que elas “são seres humanos portadores de todas as melhores potencialidades da espécie”. Este mesmo documento destaca a criança como sujeito social e histórico que faz parte de uma organização familiar inserida em uma sociedade, com uma determinada cultura em um determinado momento histórico. Ou seja, tanto os estudos atuais como os documentos oficiais demonstram uma atenção especial para com a forma de concebermos a criança, a sua infância e as suas características2.

O conceito de infância, atualmente, redesenha-se com a influência de fatores externos ao meio familiar, principalmente das mídias. Ocorre o que Postman (1999) caracteriza como sendo o “desaparecimento da infância”, ou seja, um amadurecimento precoce cultural acelera a transformação das crianças em adultos. Esse acelera- mento antecipa etapas, desestrutura o desenvolvimento da infância e, consequentemente, reflete na precocidade das outras fases da vida, principalmente emocional da criança.

A escola é um dos espaços que lida diretamente com a criança nas diversas fases da infância. As interações que ocorrem neste contexto precisam considerar a influência histórica, cultural e social em que o sujeito está inserido para que os processos de aprendizagem sejam pensados e planejados a partir de uma educação significativa na formação humana crítica.

Conforme a Proposta Curricular de Santa Catarina (2014) 3 , os seres humanos são diversos em suas experiências de vida históricas e culturais, são únicos em suas personalidades e percebem o mundo de maneira diferente, constituindo-se como sujeitos socioculturais.

Considerando que todos somos diferentes, a diversidade pode ser entendida, desta forma, como a construção histórica e social nos diferentes tempos e espaços, ou seja, não pode ser compreendida apenas a partir dos aspectos observáveis a olho nu ou biológicos. Ela também é construída nos processos históricos cumulativos.

Cabe lembrar que uma das Competências Gerais da BNCC é “valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade” (BRASIL, 2018, p. 09). Destaca-se neste mesmo documento que “a escola, como espaço de aprendizagem e democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades” (BRASIL, 2018, p. 14).

Sinalizamos, desta forma, que um percurso formativo inclusivo precisa compreender na organização curricular – que engloba o entrelaçamento entre o trabalho no seio de cada componente curricular ou a partir do diálogo entre componentes com práticas educativas presentes nos mais diferentes projetos educativos que a escola desenvolve – a diversidade como “princípio formativo”. A PCSC (2014) aponta a importância de considerar: I) a educação para as relações de gênero; II) a educação para a diversidade sexual; III) a educação das relações étnico-raciais; IV) a educação especial; V) a educação escolar indígena; VI) a educação do campo e; VII) a educação escolar quilombola.

E, por isso, reforça-se a compreensão de educação enquanto direito universal acompanhada da ideia de uma educação comum a todos, no sentido de aprendizagens de saberes válidos para toda e qualquer pessoa, considerando sua cultura, sua história e seu contexto social. Na atualidade, têm-se intensificado as discussões relacionadas com os temas envolvendo a diversidade, cada vez mais presentes no ambiente educacional. Isso se dá pelo fato de a escola receber alunos de diferentes grupos sociais, políticos, econômicos, étnicos, religiosos, entre outros.

O Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense (2019) reitera a importância de se considerar nos processos de ensinar e aprender na escola a dimensão da diversidade. O referido documento coloca alguns desafios necessários à escola, em movimento a partir do “currículo em ação”, como espaço-dispositivo estratégico para:

I. Enfrentar o racismo estrutural e institucional por meio de “práticas pedagógicas interdisciplinares, articuladas aos componentes curriculares, mediante utilização de metodologias e de estratégias que visem assegurar o respeito, o reconhecimento, o protagonismo e a valorização étnico-racial dos afrodescendentes e indígenas no ambiente escolar” (p. 34);

II. Superar as visões negativadas acerca do rural como espaço do atraso, periférico e à margem das políticas públicas, potencializando a Educação do Campo como parte dos direitos dos sujeitos do campo ao acesso à escolarização no lugar e/ou comunidade em que vivem e um processo de escolarização que respeite seus territórios, saberes e práticas (p. 87-92);

III. Fortalecer a Educação Especial como parte indissociável da Educação Básica, “um direito de todos e dever do Estado e da família, sem qualquer forma de preconceito ou discriminação, pela sua condição humana de ser e estar no mundo, visando minimizar as desigualdades sociais e promover o sucesso e o bem-estar de todos os estudantes” (p. 93);

IV. Atender ao chamado dos professores indígenas presente na “Carta às professoras e aos professores das Redes Pública Estadual e Municipal de Educação Básica de Santa Catarina” em que muitos destaques acerca de seus saberes, práticas e territórios sugerem a todos e todas que “ao criarem seus planos de aula para cada componente curricular, busquem bibliografias indígenas históricas e também atuais”. Tenham como referência as muitas indicações bibliográficas realizadas no referido documento e que contribuam nos processos de ensinar e aprender na escola para superar preconceitos (p. 46 – 48);

V. Oportunizar a oferta de uma Educação Ambiental Formal enquanto “processo e não evento considerando a educação dos sujeitos para o conhecimento socioambiental e suas conexões, sustentadas na informação, na sensibilização e na mobilização individual e/ou coletiva para a construção de valores socioambientais, conhecimentos, habilidades, atitudes, tanto para a melhoria quanto para a sustentabilidade de todas as formas de vida; e que, no âmago do corpo-mente-espírito, possa promover a fé e a busca de esperança” (p. 24)

Sugerimos a leitura deste documento e suas contribuições acerca dos grandes temas da diversidade e as possibilidades de trabalho na escola, também como contribuição para fomentar ações pedagógicas que visem o desenvolvimento das competências gerais da BNCC que fazem referência à valorização da diversidade de saberes e vivências culturais existentes nos territórios de vida e ao exercício permanente da empatia, do diálogo, da cooperação, do “acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais” (BRASIL, 2018).

Tudo pode começar pelo compreender melhor quem são os sujeitos escolares, como se caracterizam as comunidades em que vivem e qual seu potencial pedagógico. Compreendeu-se que o trabalho com a diversidade pode ajudar a melhorar a ambiência de ensino e aprendizagem, combater a repetência e o abandono/esvação escolar. Pode-se avançar, como também preconiza a BNCC, na construção de uma sociedade mais justa, democrática e inclusiva.